O Pau da Barraca
Por mais de bem com a vida que estejamos, tem aqueles dias em que não adianta, a gente se queixa. Queixas miúdas: a empregada que quebrou a tampa do açucareiro, o marido e sua maldita apneia, a filha adolescente que implica com tudo, o carro que está caindo aos pedaços, ou seja, nenhuma tragédia. Dez minutos de papo no telefone com a melhor amiga valem por uma sessão de terapia, e os problemas retornam à sua verdadeira dimensão: mínima.
Só que às vezes não estamos nem um pouco de bem com a vida, nem um pouco. O mundo está desmoronando de verdade: a empregada foi flagrada roubando, o marido parece que vive em outra galáxia, a filha está prestesa levar bomba no colégio e o carro... que carro? Foi vendido para pagar as dívidas, esqueceu? Outro dia, uma amiga desabafou sobre tudo isso: de como a vida dela estava uma M generalizada, e essa letra M não era de magnífica. E se saiu com esta:
"Tenho vontade de chutar o pau da barraca, deixar que todo mundo se vire sem mim e sumir. Mas não posso
porque o pau da barraca sou eu."
Quem precisa de Nietzche, Schopenhauer, Sêneca? "O pau da barraca sou eu" foi a coisa mais filosófica que ouvi
nos últimos tempos (permita eu exagerar um pouquinho).
Entendi com clareza o conceito sofisticadíssimo que minha amiga desenvolveu. Simplesmente não dá para a gente chutar a si próprio, tirar a si mesmo de cena, e eu sei muito bem o que um psiquiatra diria:
"Isso é onipotência, meninas. Quem vocês pensam que são? As controladoras universais, as bambambãs do
cotidiano, as deusas sagradas do Olimpo?"
Na trave, Freud. Assim como minha amiga, há muita mulher por aí que se ousar ter um piti e chutar o pau da barraca, matará a família inteira de fome, porque é ela que descola o dinheiro, é ela que se divide entre dois empregos, é ela que segue trabalhando no final de semana. Ela é o homem da casa. Tem mulher que se largar os filhos ao deus-dará, eles não saberão o caminho da escola, não lavarão as mãos antes de jantar, não lembrarão de ir ao dentista, esquecerão para que serve um chuveiro. Até de pagar a conta da banda larga é capaz de eles esquecerem, mas isso já não garanto, eles ficam sem mãe, mas não ficam sem computador.
A verdade é que a gente assume tantos compromissos e se enreda de um jeito na vida, que depois não consegue mais se desvencilhar sem deixar mortos e feridos. Todo mundo deveria ter o direito de chutar o pau da barraca, mas a responsabilidade impede, mesmo quando não somos o pau da barraca. E sendo, aí é que não dá mesmo para levantar acampamento.
Eu, de vez em quando, sumo dois ou três dias, mas volto. Encontro todo mundo vivo e mais corado. É bem verdade que deixo um dossiê com todas as regras de sobrevivência na selva, os telefones de contato e um dinheirinho guardado na gaveta para o caso de imprevistos. Deixo a barraca aos cuidados de quem fica. E descubro que mamãe chutar o pau da barraca a intervalos regulares é tudo o que os filhotes mais precisam.
Martha Medeiros
(20/03/2011 – Revista de Domingo do Jornal O Globo)
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